terça-feira, 11 de dezembro de 2012

CRÓNICA / NOVEMBRO / FONTE NOVA / ARAGONEZ MARQUES


Eu só queria ir a casa da minha mãe

A avó Rita tinha saído da Casa de Repouso da Serra depois de recuperar de uma anca partida, dessas que só se partem com os anos e ia finalmente de regresso à sua, bem, para a da João, mesmo ao lado.
 Pirão, ponto.
Vinte e três, ponto.
 Debaixo do Alentejo, isso mesmo, onde agora se cantam missas.

-Vamos a casa da avó!

Saímos mulher e gaiatas saltando o Guadiana, o rio das poucas pontes, mas que seca uma vez por ano, rindo-se das fronteiras.
Nada se notava de diferente dos dois lados.
As oliveiras continuavam a dar azeitonas, as azinheiras bolota e os sobreiros cortiça de nove em nove anos, tanto de um lado como do outro.
 Igual.
 As mesmas gentes, não fosse termos sido obrigados durante tantos anos a vivermos de costas, tantos, que até as coisas mudaram de nome enquanto olhávamos em sentidos opostos, para o poder de Lisboa uns e de Madrid, os outros.
Duas quintas, dois donos, esta é minha e esta é tua, que engano, esta é deles e  essa deles também, muitas vezes as mesmas famílias por casamentos, bulas e concordatas.

Chegámos a Portalegre.
Um cavalo anão, de pedra, desproporcionado em relação à rotunda, foi circulado pela direita, até um cubo com duas crianças molhadas, desproporcionadas ao contrário, devido ao enorme tamanho do cubo e à diminuta dimensão da rotunda..
Podia ter subido pelos Assentos até à Rua de Elvas, mas não, gostava de impressionar e segui em frente para entrar pelo Rossio, a sala de entrada, assim o considerei sempre eu, de uma cidade que necessitava estratégia para ser mostrada.
Olha a cruz no cimo da serra, estão a ver? e a capelinha azul e branca, estão a ver,olha as escadinhas,  encosta acima, chama-se Serra da Penha.
Deixando o Domingos & Companhia ao lado, agora Matos, o filho do da Pérola, os Belos, Setubalense, parece que Rodoviária agora, um tributo às moscas de Aleixo estas mudanças citadinas de loreal, aí estava a sala, acolhedora, daquela cidade que  me fazia sempre excitar em adrenalina quando a pretendia mostrar.
-Olha a árvore! Grande não é?
O Palácio, chave dos olhos de quem entra, agrediu-me com os dragões, vermelhos e de letras raras que saltavam já para o passeio, como que expulsos para a rua pela solenidade do edifício. Instintivamente optei por desviar a atenção dos acompanhantes numa ordem para cumprir, olhem à direita, rápido, ali está o Facha, o das portas giratórias que vos falei.
- A porta que quando a montaram as pessoas não sabiam sair dela, papá?
- Sim, essa mesmo.
Funcionou, por pouco tempo.
Comecei a subir os Canastreiros, para no alto, virar à direita e baixar o Pirão até ao número vinte e três.
Qualquê? Proibido!
De imediato virei e desci, e virei de novo, e para que se não notasse a minha falta de informação, para que parecesse controlada essa minha inversão de marcha rotativa, informei:
- Vamos passar ao Facha, vejam a porta.
Nem porta nem Facha.
 Está fechado, completei de imediato, enquanto uma das gaiatas disse:

- Olha a árvore, outra vez! 

Outra vez voltei a subir os Canastreiros, a idéia agora era virar à esquerda, Fábrica Real acima, atravessar a Corredora, subir até à Escola Industrial, virar-lhe as costas, avançar até ao Crisfal, entrar pelo Bairro Alto, seguir em frente e baixar o Pirão, até ao vinte e três.
Assim fiz, esquerda, Fábrica Real, Corredora, mas não havia já ligação com a Escola Industrial, rápido virei e desci, retretes à direita, passei por onde era a oficina do Senhor Teófilo, o pai do Procópio, novas retretes à direita e de novo a Avenida da Liberdade:

- Olha a árvore outra vez!

Não respondi, as gaiatas já começavam a chatear. Baixar não podia, tinha mesmo que subir, e subi, virei no Palácio da Justiça, tentei subir Mercado acima, não me deixaram, virar de novo, baixar de novo, paredes tipo Centro Cultural de Belém ao lado, outra vez o Teófilo, as retretes:

- Olha a árvore outra vez papá!

 Não respondi, virei à direita, subi agora tudo até ao Hotel D. João III, que já não estava, virei e subi, passei ao pé da loja dos pássaros do Lagem, desci irritado até à parte de cima do Mercado, esquerda, loja da massa frita, ora toma, estava onde queria, Calvário à direita, mais pedras CCB, o convento militarizado, a Escola Industrial, finalmente onde queria estar, e agora com calma, Corredora de Cima, em frente, tranquilo até chegar ao Crisfal. 
Nada disse, quando vi ser proibido entrar por aí para o Bairro Alto, desci e logo a seguir virei à esquerda, o Centro de Emprego à direita e a Rua dos Canastreiros à frente.
Socorro.
Outra placa com uma seta em fundo azul mandava descê-la. Quero subir, subir, raios que estava quase lá. Meti a segunda, não fosse faltar-me os travões e aí fui eu, como numa pista de ócio da Serra da Estrela ou da Serra Nevada, tudo ao contrário, Hidro à direita, Martelas à esquerda e no fundo, um respirar fundo... e vá de meter-me à direita pelo Romba, outra vez o Rossio:

- Olha a árvore papá!

Aí já me desorientei e comecei a subir a Liberdade, percebendo que a direita estava impossibilitada, virei para o Tarro, desta vez à esquerda, curioso o Tarro à esquerda, deve ser de ter começado a tombar lobos e desci o jardim pelo lado dos Correios, a papelaria do Carlos Alves, o Restaurante Povoas da família do Palácio dos Chineses e agora, que queria descer, aquele malvado sinal obrigava-me a subir a Rua de Santo André. A minha mulher, ainda por cima, com aquele perverso humor Castelhano, perguntou-me:
¿Estás seguro de que éste es tu pueblo?
O silêncio em certas alturas é o melhor amigo do homem, não o cão.
Nada disse, seguro deste pensamento que descobri ao longo de meio século (é muito tempo) de andar por aqui e virei na rotunda para o campo de futebol, desci pelo pavilhão desportivo até à estrada, de novo o Domingos & companhia, blá, blá, blá e cheguei ao Rossio, como ratinho branco em laboratório.

- Olha a árvore papá!

Mantive o meu silêncio e virei, estrada nova adiante, salta que salta na calçada portuguesa, até ao fundo da Rua de Elvas, era confuso entrar nela para subir, parecia que tinha um café construído no meio, táxis também havia, passei-lhes ao lado e subi e, ao chegar à Caixa Geral de Depósitos, meio passeio atravessou a rua, devem ter transformado isto em zona peatonal e por instinto, virei para o Capote e encontrei-me no Largo da Sé. Parei um pouco para refletir antes de tomar a decisão de baixar ao lado do Jornal Fonte Nova, até ao sanatório, fi-lo de espaço, de novo segunda metida.

Está tudo louco? 

Não podia virar à esquerda, outra vez em direção ao Rossio, esperando já a observação das minhas filhas de que a árvore estava ali outra vez. Foi assim que ao chegar aos muros, resolvi subir, atravessar a Rua Direita e subir, subir sempre, até chegar ao largo dos azulejos azuis com vacas e fardos de palha na parede, com a taberna do bébé, alcunha herdada de ter trabalhado no Sonho do Bébé, da mulher do Matos da Pérola, agora o do Domingos & Companhia.
Uma camioneta estava aí a descarregar, ocupando a praça e eu com o Pirão tão perto.
Não me atrapalhei, agora estava no meu território, palmilhado mil e uma vez durante anos e anos que fui figurante deste cenário.
 Sabia como fazer.
 Passei a fonte das três bicas e comecei a descer, se tudo corresse bem, passava por baixo do Arco de Santo António,  depois o edifício da guarda, o palácio do Costa Pinto, passava por trás do Alentejano, Estrela, Fonte da Boneca, Banco de Portugal, Santiago e à esquerda, o Pirão já ali, era só descê-lo até ao número vinte e três.
Quando meti o focinho do carro no Corro, em frente à adega e olhei o Arco de Santo António, vi que por aí já não passavam carros e não poderia estar aí tanto tempo parado, pois as crianças estavam impacientes e a mulher com o sorriso mais trocista o mundo.
Em segundos decidi, num misto de impotência e raiva, subir o Largo dos Aviadores, descer por trás como quem desce para o cinema, depois antes das escadas virar à esquerda, passar à antiga porta do Barrigas e chegar por aí ao cimo da Rua dos Canastreiros, depois em frente, descer o Pirão até ao vinte e três.
 Meti a primeira, arreliado, prego a fundo e virei à direita para atravessar o Corro para o outro lado.
 Frente ao Governo Civil, saltaram-me dois polícias, apitos estridentes, ameaçadores:
- Você não pode passar por aqui, não viu o sinal? Os seus documentos.
Apeteceu-me meter o polegar na boca, deitar-me em posição fetal e apenas soletrei como um menino perdido, sem culpa e procurando colo:
- Eu só quero que alguém me leve para casa da minha mãe.

Aragonez Marques


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