Eu só
queria ir a casa da minha mãe
A avó Rita tinha
saído da Casa de Repouso da Serra depois de recuperar de uma anca partida,
dessas que só se partem com os anos e ia finalmente de regresso à sua, bem,
para a da João, mesmo ao lado.
Pirão, ponto.
Vinte e três, ponto.
Debaixo do Alentejo, isso mesmo, onde agora se
cantam missas.
-Vamos a casa da
avó!
Saímos mulher e
gaiatas saltando o Guadiana, o rio das poucas pontes, mas que seca uma vez por
ano, rindo-se das fronteiras.
Nada se notava de
diferente dos dois lados.
As oliveiras
continuavam a dar azeitonas, as azinheiras bolota e os sobreiros cortiça de
nove em nove anos, tanto de um lado como do outro.
Igual.
As mesmas gentes, não fosse termos sido
obrigados durante tantos anos a vivermos de costas, tantos, que até as coisas
mudaram de nome enquanto olhávamos em sentidos opostos, para o poder de Lisboa
uns e de Madrid, os outros.
Duas quintas,
dois donos, esta é minha e esta é tua, que engano, esta é deles e essa deles também, muitas vezes
as mesmas famílias por casamentos, bulas e concordatas.
Chegámos a
Portalegre.
Um cavalo anão,
de pedra, desproporcionado em relação à rotunda, foi circulado pela
direita, até um cubo com duas crianças molhadas, desproporcionadas ao
contrário, devido ao enorme tamanho do cubo e à diminuta dimensão da rotunda..
Podia ter subido
pelos Assentos até à Rua de Elvas, mas não, gostava de impressionar e segui em
frente para entrar pelo Rossio, a sala de entrada, assim o considerei sempre
eu, de uma cidade que necessitava estratégia para ser mostrada.
Olha a cruz no
cimo da serra, estão a ver? e a capelinha azul e branca, estão a ver,olha as
escadinhas, encosta acima,
chama-se Serra da Penha.
Deixando o
Domingos & Companhia ao lado, agora Matos, o filho do da Pérola, os Belos,
Setubalense, parece que Rodoviária agora, um tributo às moscas de Aleixo estas
mudanças citadinas de loreal, aí estava a sala, acolhedora, daquela cidade que me fazia sempre excitar em
adrenalina quando a pretendia mostrar.
-Olha a árvore!
Grande não é?
O Palácio, chave
dos olhos de quem entra, agrediu-me com os dragões, vermelhos e de letras raras
que saltavam já para o passeio, como que expulsos para a rua pela solenidade do
edifício. Instintivamente optei por desviar a atenção dos acompanhantes numa
ordem para cumprir, olhem à direita, rápido, ali está o Facha, o das portas
giratórias que vos falei.
- A porta que
quando a montaram as pessoas não sabiam sair dela, papá?
- Sim, essa
mesmo.
Funcionou, por
pouco tempo.
Comecei a subir
os Canastreiros, para no alto, virar à direita e baixar o Pirão até ao número
vinte e três.
Qualquê?
Proibido!
De imediato virei
e desci, e virei de novo, e para que se não notasse a minha falta de
informação, para que parecesse controlada essa minha inversão de marcha rotativa,
informei:
- Vamos passar ao
Facha, vejam a porta.
Nem porta nem
Facha.
Está fechado, completei de imediato, enquanto
uma das gaiatas disse:
- Olha a árvore,
outra vez!
Outra vez voltei
a subir os Canastreiros, a idéia agora era virar à esquerda, Fábrica Real
acima, atravessar a Corredora, subir até à Escola Industrial, virar-lhe as
costas, avançar até ao Crisfal, entrar pelo Bairro Alto, seguir em frente e
baixar o Pirão, até ao vinte e três.
Assim fiz,
esquerda, Fábrica Real, Corredora, mas não havia já ligação com a Escola
Industrial, rápido virei e desci, retretes à direita, passei por onde era a
oficina do Senhor Teófilo, o pai do Procópio, novas retretes à direita e de
novo a Avenida da Liberdade:
- Olha a árvore
outra vez!
Não respondi, as gaiatas
já começavam a chatear. Baixar não podia, tinha mesmo que subir, e subi, virei
no Palácio da Justiça, tentei subir Mercado acima, não me deixaram, virar de
novo, baixar de novo, paredes tipo Centro Cultural de Belém ao lado, outra vez
o Teófilo, as retretes:
- Olha a árvore
outra vez papá!
Não
respondi, virei à direita, subi agora tudo até ao Hotel D. João III,
que já não estava, virei e subi, passei ao pé da loja dos pássaros do Lagem,
desci irritado até à parte de cima do Mercado, esquerda, loja da massa frita,
ora toma, estava onde queria, Calvário à direita, mais pedras CCB, o convento
militarizado, a Escola Industrial, finalmente onde queria estar, e agora com
calma, Corredora de Cima, em frente, tranquilo até chegar ao Crisfal.
Nada disse, quando
vi ser proibido entrar por aí para o Bairro Alto, desci e logo a seguir virei à
esquerda, o Centro de Emprego à direita e a Rua dos Canastreiros à frente.
Socorro.
Outra placa com
uma seta em fundo azul mandava descê-la. Quero subir, subir, raios que estava
quase lá. Meti a segunda, não fosse faltar-me os travões e aí fui eu, como numa
pista de ócio da Serra da Estrela ou da Serra Nevada, tudo ao contrário, Hidro
à direita, Martelas à esquerda e no fundo, um respirar fundo... e vá de
meter-me à direita pelo Romba, outra vez o Rossio:
- Olha a árvore
papá!
Aí já me
desorientei e comecei a subir a Liberdade, percebendo que a direita estava
impossibilitada, virei para o Tarro, desta vez à esquerda, curioso o Tarro à
esquerda, deve ser de ter começado a tombar lobos e desci o jardim pelo lado
dos Correios, a papelaria do Carlos Alves, o Restaurante Povoas da família do
Palácio dos Chineses e agora, que queria descer, aquele malvado sinal
obrigava-me a subir a Rua de Santo André. A minha mulher, ainda por cima, com
aquele perverso humor Castelhano, perguntou-me:
¿Estás seguro de que éste es tu pueblo?
O
silêncio em certas alturas é o melhor amigo do homem, não o cão.
Nada
disse, seguro deste pensamento que descobri ao longo de meio século (é muito
tempo) de andar por aqui e virei na rotunda para o campo de futebol, desci pelo
pavilhão desportivo até à estrada, de novo o Domingos & companhia, blá,
blá, blá e cheguei ao Rossio, como ratinho branco em laboratório.
- Olha
a árvore papá!
Mantive o meu
silêncio e virei, estrada nova adiante, salta que salta na calçada portuguesa,
até ao fundo da Rua de Elvas, era confuso entrar nela para subir, parecia que
tinha um café construído no meio, táxis também havia, passei-lhes ao lado e
subi e, ao chegar à Caixa Geral de Depósitos, meio passeio atravessou a rua,
devem ter transformado isto em zona peatonal e por instinto, virei para o
Capote e encontrei-me no Largo da Sé. Parei um pouco para refletir antes de
tomar a decisão de baixar ao lado do Jornal Fonte Nova, até ao sanatório, fi-lo
de espaço, de novo segunda metida.
Está
tudo louco?
Não
podia virar à esquerda, outra vez em direção ao Rossio, esperando já
a observação das minhas filhas de que a árvore estava ali outra vez. Foi assim
que ao chegar aos muros, resolvi subir, atravessar a Rua Direita e subir,
subir sempre, até chegar ao largo dos azulejos azuis com vacas e fardos de
palha na parede, com a taberna do bébé, alcunha herdada de ter trabalhado no
Sonho do Bébé, da mulher do Matos da Pérola, agora o do Domingos &
Companhia.
Uma
camioneta estava aí a descarregar, ocupando a praça e eu com o Pirão tão perto.
Não me
atrapalhei, agora estava no meu território, palmilhado mil e uma vez durante
anos e anos que fui figurante deste cenário.
Sabia
como fazer.
Passei
a fonte das três bicas e comecei a descer, se tudo corresse bem, passava por
baixo do Arco de Santo António, depois o edifício da guarda, o
palácio do Costa Pinto, passava por trás do Alentejano, Estrela, Fonte da
Boneca, Banco de Portugal, Santiago e à esquerda, o Pirão já ali, era só
descê-lo até ao número vinte e três.
Quando
meti o focinho do carro no Corro, em frente à adega e olhei o Arco de Santo
António, vi que por aí já não passavam carros e não poderia estar aí tanto
tempo parado, pois as crianças estavam impacientes e a mulher com o sorriso
mais trocista o mundo.
Em
segundos decidi, num misto de impotência e raiva, subir o Largo dos Aviadores,
descer por trás como quem desce para o cinema, depois antes das escadas virar à
esquerda, passar à antiga porta do Barrigas e chegar por aí ao cimo da Rua dos
Canastreiros, depois em frente, descer o Pirão até ao vinte e três.
Meti
a primeira, arreliado, prego a fundo e virei à direita para atravessar o Corro
para o outro lado.
Frente
ao Governo Civil, saltaram-me dois polícias, apitos estridentes, ameaçadores:
- Você
não pode passar por aqui, não viu o sinal? Os seus documentos.
Apeteceu-me
meter o polegar na boca, deitar-me em posição fetal e apenas soletrei
como um menino perdido, sem culpa e procurando colo:
- Eu
só quero que alguém me leve para casa da minha mãe.
Aragonez
Marques
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